sexta-feira, 11 de junho de 2010

O povoamento da América do Sul


Antes de falar sobre o que indica o título acima, precisamos voltar ainda ao assunto das discórdias entre os arqueólogos dos EUA e da América do Sul. Vejamos: o principal questionamento de diversos arqueólogos sul-americanos é sobre a limitação do tempo imposto pelo Sítio Clóvis.
Porém, novas descobertas arqueológicas noutras regiões, principalmente na América do Sul, sugerem que os sítios de cultura Clóvis não foram os pioneiros na ocupação do continente americano.
Esses novos achados foram obtidos pelos arqueólogos denominados de pré-clovistas, ou pré-Clóvis. Vale salientar que os pares pré-clóvis não formam uma corrente homogênea, existem arqueólogos que defendem que o povoamento das Américas é anterior a cultura Clóvis em no máximo 2 mil anos, neste caso a ocupação do continente se situaria não em 11 e 12, mas entre 13 a 14 mil anos atrás. Ademais há outros pré-clovistas que recuam bastante a colonização do continente em até 50 mil anos. Não obstante, os norte-americanos são relutantes em aceitar os dados arqueológicos e tampouco as datações obtidas por carbono 14, criticando as evidências e teorias apresentadas, contestando-as como dados inconclusivos, “contaminações” de solo, área de escavação deturpada entre outras acusações desmedidas. Para Meggers (1979) nenhum dos achados relacionados a datas que excederam 24.000 anos têm sido universamente aceitos pelos arqueólogos.

Clovistas ferrenhos recusam-se até mesmo a examinar com seriedade qualquer possibilidade de que poderia ter havido humanos no continente americano antes dos fatídicos 11,4 mil anos que marcam o início da cultura Clóvis na América do Norte. (NEVES, 2008).

Todavia, novos achados arqueológicos obtidos pela corrente pré-clóvis tem acalentado ainda mais o debate sobre o povoamento das Américas. Segundo Betty Meggers (1979) Em Tlapacoya, México, instrumentos lascados associados com a fauna extinta foram datados pelo Carbono – 14 entre 24.000 ± 500[1] e 22.000 ± 2.600 anos passados.
Como já afirmamos, muitos arqueólogos sul-americanos aventaram a possibilidade de povoamento do Novo Mundo por travessia marítima. Vejamos o que falam os pesquisadores, a partir dos resultados obtidos com as datações e novas análises em fotos de satélites, além do uso de tecnologias avançadas.
A arqueóloga brasileira Niède Guidon (que está a serviço do Centro de Altos Estudos da Sorbone) defende que o homem navega a mais de 800 mil anos, o que segundo ela, seria admissível que o homem chegou às Américas por navegação via oceano Pacífico. A pesquisadora se baseia na ocupação da Ilha de Flores, na Indonésia.
Porém, o pesquisador da USP Walter Neves refuta tal teoria utilizando-se como fundamento a ausência de sítios arqueológicos e vestígios de ocupação nas Ilhas Polinésias. Ainda Segundo Walter, as datações destas ilhas não chegam a 4 mil anos, o que inviabiliza a teoria a ocupação de uma datação tão antiga. Mas, achados arqueológicos na Austrália comprovam a existência da presença humana naquele país a pelo menos 50 mil anos o que possibilita a teoria do povoamento das Américas por técnicas de navegação plausível. É notório que só se aporta na Austrália, naqueles tempos, por travessia marítima.
A tese da professora Niède Guidon, neste caso, não pode ser descartada.
Porém, para corroborar com os questionamentos, alguns arqueólogos, inclusive norte-americanos, que realizaram descobertas de sítios arqueológicos na América do Sul com datações anteriores a cultura Clóvis.
Para a arqueóloga norte-americana Ana Roosevelt a ocupação do continente americano foi realizada unicamente por Bering e sua dispersão no sentido Norte/Sul. Ela conclui, [...] assentaram-se primeiramente nos planaltos Norte Americanos (há cerca de 11.500 anos) [...] chegaram aos Andes por volta de 10.500 anos AP. [...] a colonização completa até o extremo da América do Sul foi datada em torno de 10 mil anos atrás.
Na floresta amazônica, Anna Roosevelt fez uma descoberta que abalou a comunidade científica norte-americana, o abrigo sob rocha pedra pintada, localizado nas imediações de Monte Alegre/PA, apresentou o seguinte quadro:

Foram feitas 56 datações radiocarbônicas a partir de restos de vegetais carbonizados, revelando uma antiguidade entre 11.200 e 10 mil anos atrás e 13 datações de termoluminescência em líticos e sedimentos, que indicaram uma idade pertencente ao pleistoceno tardio, contemporânea dos paleoíndios norte-americanos. (ROOSEVELT, 2000)

Essas evidências põem ainda mais em dúvida o modelo de ocupação Clóvis. Se os primeiros americanos entraram unicamente pelo Estreito de Bering porque existem sítios arqueológicos na América Central e América do Sul com datações em muito mais recuadas que a cultura Clóvis?
André Prous, (2000) arqueólogo da UFMG fez descobertas valiosíssimas na região de Minas Gerais, contudo ele é prudente em aceitar datações anteriores há 12 mil anos. Ainda segundo Prous, embora tenha sido encontrado um instrumento de pedra, que pela datação associada, obteve 20 mil anos a 15 mil anos no Sítio da Lapa Vermelha, este achado isolado para ele, como todos os outros indícios datados de mais de 12 mil anos no Brasil, é de difícil interpretação. Prous segue a mesma linha de raciocínio da Escola Americana, apesar dele ser Francês, ele descartou a datação devido a uma amostra de instrumento lítico encontrada sem correlação com outras evidências de cultura material que comprovassem a antiguidade do artefato. André Prous (2000) continua: A presença humana em Minas Gerais (e no Brasil) só é claramente atestada a partir de um período datado entre 11 mil e 12 mil anos atrás.
Outro sítio pré-histórico que desperta a revisão da teoria Clóvis é o de Monte Verde, no Sul do Chile, cuja datação é de 12.500 anos Antes do Presente.
 Segundo Anne-Marie Pessis (2000) [...] Monte Verde permite afirmar que grupos humanos habitavam essa região há 33 mil anos.
Para Walter Neves (2008) [...] o homem estava mesmo presente em Monte Verde havia pelo menos 12,3 mil anos.
No entanto, os pré-clovistas não são consensuais, embora as datações de um mesmo sítio assegurem seqüências estratigráficas confiáveis alguns arqueólogos são comedidos em datações muito recuadas. Monte Verde, no Chile, fica localizado nas proximidades de um riacho, foi escavado pelo arqueólogo norte-americano Dilehay (o maior crítico das pesquisas de Niède Guidon, na Serra da Capivara/PI), e as suas pesquisas encontraram diversos vestígios de uma cultura material muito distinta da cultura Clóvis, o que reforça a hipótese de diversas e sucessivas ocupações pleistocênicas do continente Americano.
Outro sítio localizado na região centro-oeste do Brasil põe em crise a teoria Clóvis, trata-se do sítio Santa Elina, localizado a 100 quilômetros ao noroeste de Cuiabá, capital do Estado do Mato Grosso. Santa Elina é um abrigo sob rocha próximo a Serra das Araras, nas coordenadas geográficas 15° 27’ 175” de latitude Sul e 56° 46’ 915” de longitude Oeste. Tem milhares de vestígios de sucessivas ocupações pré-históricas em milhares de anos. O sítio foi descoberto na década de 1980 e começou a ser escavado por uma equipe de Arqueólogos franceses liderados pelo casal Águeda Vilhena Vialou e Denis Vialou em 1984, e desde então foram mais de 15 anos de escavações que renderam muitas descobertas. A equipe de arqueólogos fez sucessivas escavações numa área total de 40 metros de comprimento e 5 metros de profundidade demonstrando que a ocupação do abrigo a partir de 3,50 m é do período pleistocênico.

Nesse espaço estreito de “moradia”, Santa Elina oferece condições bastante favoráveis a instalações duradouras: abrigo com proteção total das intempéries, razão pela qual, vestígios de fauna e de flora ficaram tão bem conservados, proximidade de fonte de água e posição estratégica importante, dominando o vale, o que é notável tanto para o conforto da habitação como para a subsistência do grupo pela facilidade de espreitar a caça.
Oito mil peças foram recolhidas e inventariadas. Correspondem em sua grande maioria ao material lítico, pedras lascadas no intuito de fabrico de utensílios ou plaquetas de hematita para a confecção de bastões e pigmentos para corantes. Alguns outros vestígios estão presentes, como os adornos vegetais, mas não chegam a ter uma representatividade importante em relação ao lítico. Foram também inventariados numerosos restos faunísticos, cuja grande parte corresponde a mais de 9 mil osteodermos da preguiça-terrícola ou gigante, megafauna extinta, presença essa bastante excepcional em sítios pré-históricos. (VIALOU, 2005).
                                                                                   
Santa Elina tem causado muita polêmica na comunidade científica devido a suas datações, a cronoestratigrafia que demonstrou seqüências de níveis arqueológicos não contaminados, tampouco, alterados estratigraficamente, porém na camada de 5 metros de profundidade obteve-se uma datação de 30 mil anos Antes do Presente. Contudo nesta camada não foi encontrada nenhuma evidência de vestígios materiais antrópicos. Neste mesmo sítio foram encontrados fósseis de megafauna, sobretudo, de uma preguiça-terrícola Glossotherium associados a refugos (vestígios diversos de lítico) de origem humana. Um achado tem colocado Santa Elina na lista dos sítios arqueológicos mais antigos das Américas, pedaços de pele óssea, talhados como pingente.

Um dos osteodermos[2] foi transformado em adorno pelo homem que morou ou passou pelo abrigo deixando como testemunhos de suas atividades uma centena de lascas e dezenas de utensílios em calcário e em sílex. Não só é fundamental a constatação da contemporaneidade do homem com essa fauna extinta, num solo datado em torno de 25 mil anos, como sua convivência com a preguiça gigante num mesmo espaço habitacional e sua intervenção, que permitem transformar um de seus milhares de ossículos em um pingente, por abrasões nas duas faces desse osso de 2,2 cm de comprimento e de orifícios simetricamente opostos em suas extremidades. (VIALOU, 2005).

Outros indícios são indicadores da presença contemporânea no sítio de megafauna com seres humanos, restos de instrumentos líticos, ósseos e carvões confirmam a seqüência estratigráfica sem nenhuma alteração no solo. Todos estes indicadores foram datados por métodos convencionais, como o carbono 14.
O sítio arqueológico mais polêmico da atualidade é sem dúvida o Boqueirão da Pedra Furada que fica na área do Parque Nacional Serra da Capivara, no sudoeste do Piauí. Único parque de proteção do semi-árido com vegetação de caatinga. O Parque Nacional Serra da Capivara possui uma área de 130 mil hectares e compreende os municípios de São Raimundo Nonato, Coronel José Dias, São João do Piauí e Canto do Buriti. Possui a maior concentração de espécies animais do clima semi-árido.
Além disso, a região do Parque dispõe de três conjuntos geomorfológicos: a oeste, as chapadas; a leste, planícies e no centro as cuestas. Estas formas de relevo forneceram milhares de abrigos sob rocha ao homem pré-histórico, atenuando o acesso a reservatórios d’água naturais. A caatinga é o bioma dominante em toda a área do Parque Nacional, contudo, nas áreas mais baixas das chapadas onde correm pequenos riachos e ainda existem árvores mais altas que são resquícios do clima tropical-úmido do passado. Supõe-se que a 50 mil anos toda a área do Parque Nacional era ocupada por vegetações típicas de clima tropical-úmido e as planícies era uma extensa savana. A fauna era composta por mastodontes, preguiças e tatus gigantes. Que as evidências arqueológicas corroboram a contemporaneidade com o homem pré-histórico. Acredita-se que a transição do clima de tropical-úmido para um clima mais árido ocorreu por volta de 12 mil anos atrás, as fontes de águas se tornaram mais raras, promovendo supostamente a extinção dos animais de grande porte (megafauna). Contudo, os animais de pequeno porte e os humanos se adaptaram melhor as alterações climáticas.
Segundo os estudos feitos por várias equipes da Fundação do Homem Americano e que podemos encontrar nas referências aqui apresentadas, pode-se afirmar que a região do Parque Nacional é composta de rochas sedimentares que foram se formando a partir da sedimentação do oceano que antes formava o relevo da região. O arenito e calcário são mais comuns, apesar de possuírem a mesma formação geológica são bem distintos. O arenito foi formado a mais de 400 milhões de anos e é composto com grãos de quartzo, mais apresenta também uma fração de óxido de ferro, que foi gerado pela impregnação de águas das chuvas. A paisagem do Parque é formada por serras, chapadas, boqueirões e baixões que foram moldadas pelas ações do vento, chuvas, sol, calor e frio (os intemperismos).

A toca do Boqueirão da Pedra Furada forma um abrigo sob-rocha de grandes dimensões, com 75 metros de altura aproximadamente e, uma largura de 70 metros, aberto ao sul, situado no sopé de cuesta arenítica e em frente à planície pré-cambriana. As paredes do abrigo estão cobertas de pinturas pertencentes a períodos diferentes das tradições Nordeste e Agreste que totalizam mais de mil grafismos, mas que significam apenas os restos de painéis rupestres que deviam ser muito superiores em número de registros gráficos. Além da ampla plataforma, que permite o assentamento de um expressivo número de indivíduos, o abrigo apresenta, no lado esquerdo, um boqueirão que recebe diretamente a água da chuva que escorre por uma chaminé escavada na rocha, e que pode armazenar aproximadamente 7.000 litros d’água. (MARTIN, 2005).

O sítio arqueológico Boqueirão da Pedra Furada apresenta a maior concentração de pinturas rupestres do mundo, alguns painéis com pinturas caíram do bloco original no solo do abrigo junto de fogueiras que foram datadas por carbono – 14 em 17 mil anos antes do presente, contudo, nas camadas inferiores alguns artefatos líticos associados a fogueiras apresentam as datações mais antigas das Américas, entre 39 mil a 48 mil anos Antes do Presente.
Essas descobertas foram apresentadas como tese de Doutorado pelo arqueólogo italiano Fábio Parenti em 1993 na capital francesa. Fábio defendeu que os artefatos líticos encontrados nas camadas inferiores do sítio são indubitavelmente instrumentos de origem antrópica. Os instrumentos líticos foram confeccionados em pequenos seixos de quartzo e quartzito, matérias-primas exógenas, visto que o abrigo é de arenito, ele conclui que não há como questionar que estes artefatos foram trazidos de outros lugares pelos agrupamentos pré-históricos que habitaram aquele abrigo há 50 mil anos atrás. O Boqueirão da Pedra Furada foi escavado entre os períodos de 1978 a 1998, 20 anos de estudos.
Em 1982, duas datações de 25 mil anos foram obtidas de amostras retiradas de níveis arqueológicos, estimulando ainda mais a prospecção de uma área mais profunda. Dois anos mais tarde num nível sedimentar mais baixo foram obtidas mais datações em torno de 31 mil anos atrás. Em 1987 em camadas estratigráficas mais baixas ainda foi confirmada a seqüência cronoestratigráfica de várias amostras datadas em 39 mil anos. Noutra camada de sedimentos foi obtida uma datação de 50 mil anos. O sítio proporcionou uma seqüência de datações de 6 mil anos à 48 mil anos Antes do Presente.
A cronoestratigrafia confirma as sucessivas ocupações do sítio, porém, para os Clovistas as datações são suspeitas, até mesmo as amostras que foram defendidas por Fábio Parenti em seu Doutorado são postas em dúvidas se realmente possuem origem antrópica. Contudo, Niède rebate as críticas de alguns arqueólogos (as), sobretudo norte-americanos, refutando a possibilidade daquela fogueira ter sido acesa por um incêndio natural, ela continua: se tivesse ocorrido um incêndio de origem natural naquele abrigo o mesmo seria estendido para todo o abrigo e não apenas para um aglomerado de seixo ordenados deliberadamente por seres humanos.
O “embate científico” parece não ter fim. As evidências arqueológicas encontradas em diversos sítios da América Central e do Sul suscitam a construção e aceitação de novos modelos de ocupação do Continente Americano, às evidências são claras, as datações foram obtidas pelos mesmos laboratórios que dataram a cultura Clóvis. Ou todos os arqueólogos que fizeram descobertas de habitações pleistocênicas estão errados ou o modelo Clóvis está superado.
Como proposta da dispersão humana aqui na América do Sul, a pesquisadora Niède e responsável pelo projeto, apresenta uma migração para o Brasil, que ainda precisa ser confirmada. Ao mesmo, não tem respostas para dizer de onde vieram os grupos humanos que habitaram o sudeste do Piauí.

Considerando-se que até um metro abaixo de camada datada de 48 mil anos ainda havia material arqueológico, pode-se afirmar que a área arqueológica de São Raimundo Nonato foi ocupada pelo homem desde há cerca de 60 mil anos. [...] Em síntese pode-se admitir que, penetrando no país por uma via ainda desconhecida, grupos humanos chegaram até o sudeste do Piauí há cerca de 60 mil anos. O sul de Minas Gerais estaria povoado por volta de 30 mil anos atrás, e no sul do Brasil grupos humanos estariam estabelecidos há pelo menos 15 mil anos. (GUIDON, 1992).


[1] Significa a margem de erro: assim a data pode ser 500 anos para ou para menos. Diante do número 24 mil, 500 é considerado insignificante, mas 2.600 para 22 mil anos é considerada alta a margem de erro.
[2] Relativo aos animais que tem a pela dura, em forma de placas ósseas.

2 comentários:

  1. Muito bom seu artigo! É responsável nas referências e fiél as ideias dos pesquisadores em questão, muito bom!

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